RECEITA PARA O LIVRO DO JIRGES

São Paulo, 1 de março de 2009

Este blog está sendo construído como ferramenta para a edição de um livro sobre nosso amigo Jirges Ristum, a ser editado pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo e organizado por mim. A idéia central do livro parte de uma constatação simples: todos nós sempre imaginamos o que estariam fazendo hoje pessoas com quem convivemos intensamente e que já não estão mais entre nós. O que pensariam sobre o mundo, sobre a vida, como seriam nossas conversas? O livro pretende registrar a memória do amigo que nos deixou precocemente, tecendo diálogos imaginários entre nós e o Jirges.

O Jirges não produziu uma obra sistemática. Grafômano, escreveu cartas, bilhetes, guardanapos, anotou idéias, pensamentos, insights. Afinal, este é o caráter dos arquivos pessoais que acabam por deixar relevantes vestígios de uma vida e do seu tempo.

É comum que o processo de criação misture vida e obra, mas no caso do Turco tem-se a impressão de que sua obra foi viver intensamente e fazer amigos. Muitos amigos (ver lista). Construiu-se como personagem (personagens), montou narrativas, fez de tudo para conquistar a cumplicidade das pessoas. Vivia cercado de gente que gostava dele. E também dos que não gostavam muito... Sempre tinha na ponta da língua uma frase lapidar, irônica, ferina, citava outras proferidas por algum amigo e, talvez por este gosto, escreveu tantos aforismos.

Todos nós que convivemos com o Turquinho demos muitas risadas juntos, dedicamos grande espaço do nosso tempo ao bom humor, muitas vezes à galhofa, enriquecendo progressivamente um rico anedotário (no bom e no mau sentido) que poderá dar o tom geral do livro.

Os textos e a concepção gráfica do livro serão tramados a partir do testemunho afetivo de seus amigos (transcrições integrais ou edição de partes dos textos a serem postados neste blog) e os fatos históricos que se desenrolam no período que cobre o arco da vida do Jirges (1942 – 1984). Assim será estabelecida uma espécie de pontuação cronológica dos fatos e eventos que tocaram uma geração que inventou a juventude.

Ainda quanto à forma do livro, é preciso levar em consideração que o mundo contemporâneo viveu, a partir do advento da psicanálise e das invenções surrealistas e dadaístas, o esfacelamento das formas canônicas e descortinou novas perspectivas para que se observe a História e os indivíduos. As técnicas da escritura automática e dos célebres “cadavre exquis” serão tomadas como referência para o projeto gráfico e incorporadas ao processo de produção do livro, o que deverá resultar numa espécie de de almanaque desenhado por um John Heartfield dos nossos dias.

Como o Jirges formou-se em direito, iniciou sua vida profissional como jornalista, depois estudou sociologia e, por fim, tornou-se cineasta e “bon vivant”, todos estes movimentos da sua alma serão sempre levados em conta tratar os múltiplos personagens vividos por ele, a partir dos pontos de vista de seus parentes, amigos e conhecidos.

Solicito, ainda, que o texto seja sempre acompanhado de uma fotografia do autor, bem como um breve resumo biográfico. Textos (de no mínimo uma frase e no máximo 3.000 toques, ou duas laudas), fotos e demais documentos poderão ser encaminhados e duas formas:

  1. Enviados para o e-mail: ivan.isola@gmail.com.br
  2. Postados diretamente no blog: http://blogdojirges.blogspot.com/

Ivan Negro Isola

GUARDANAPOS



Veja o conteúdo do livro





ELA? (em Cine/Contos)

Num filme são obsessivamente material/eterniza­dos—depois de uma longa/louca corrida pela rua—os últimos gestos de uma mulher que se refugia em seu quarto, talvez esperando a morte... Fecha-se no quarto desadorno (como em si mesma), buscando encontrar a solidão total/absoluta. Manda embora, enxotando-os, um pequeno cão e um gato, vagabundos, que modorravam/repousavam lá-dentro.

Cerra muito bem a cortina da janela, isola o sol. Pouco/pálido, já, naquele crepúsculo. Desconecta/arranca o telefone.

Cobre com a blusa de que se desfaz do corpo o poleiro de um papagaio atônito, que está somando horas num canto pouco confortável, por sobre a pia. Com a saia, faz desaparecer o aquário onde boqueja um casal de peixes/vermelhos/ dourados/brancos. NUA.

Ainda, como cobrindo um santo para enfrentar a quaresma, o espelho, — (por quanto tempo único interlocutor/sério/amigo/ representação-crítico/ ôlho-que-vê/ quase-perfeitos: não fossem certas recaídas na autocomiseração, quanto tempo aqui, nós, juntos-sós?) —, espelho que, desta vez, só poderia, tão sinceramente, refletir mesmo sua própria imagem, desolada. Verdadeira.

Por fim, superada a angústia que lhe causavam todos os olhos que podiam enxergá-la, senta-se, bate-pó, "te levo, te trago, te faço, brancas linhas, retas, minhas", queima-fumo, alinha uma quantidade de todas-as-cores/pílulas, abre a gaveta. Tira uma garrafa de uísque-bebe-no-gargalo, sussulta; tira também um envelope com algumas fotografias — as recordações, os momentos significados/fixados na memória — e, depois de tê-las observado atentamente umaporuma, rasga-as. Todas. Destruída, assim, cada/qualquer refe­rência com o mundo onde não vive e sobreviveu apenas, inerte, acredita — em vão — ter-se finalmente libertada, liberada de tudo. Em vão. Porque, levantan­do o olhar, na parede branca esquálida encontra sempre, ali, inevitável/imperecível, a imagem-sombra de si.

No entanto, vai-se acordando placidamente noutra realidade, um diferente lugar: quarto, a mortrar claro/ clara/mente que é diversa. Que nada tem a partilhar com a mulher do sono. Sonho? E, normal/mecânica, levanta-se, chama o filho, caminha pela casa banheiro cozinha prepara-se. Sai.

Invade a quietude preguiçosa de um bar (morno) no ante-fim da tarde. Derrubando-mesas-trôpega/ausente/lúcida. Rebufa-refuga. Prossegue? Atravessa gentes. Projeta/pensa/confunde irrealizações emoções; espera (cega) do que não-há-de-vir. Começa enfurecelerando o passo logo, anda mais-depressa-mais; quase corre: Corre; e, depois de uma louca/longa corrida pela rua se fecha em seu quarto talvez esperan­do a morte...

(A Samuel Beckett, In Memoriam, e a Dor-Ingloriam)

in Folhetim

ACERTAR A MOSCA (em Cine/Contos)

Era índio-moço/ambição e quis se tornar grande ar­queiro. Busca/procura mestre-arqueiro, que lhe diz—primeira coisa a aprender é não-bater-mais-cílios. Que a vida lhe seja farta/fértil, agradece, s'inclina/toca-peito, coração.

Por três anos se exercita esse moço/homem. As pál­pebras tinham se esquecido, já, do instinto/músculo de fechar-se, abertas até-mesmo-ao-dormir, quando agora-homem se apresenta, de novo, ao mestre. E, logo confirma — deve aprender a OLHAR; se conseguir EN­XERGAR uma coisa minúscula, do tamanho de uma montanha, volte a-mim.

O homem amarra com fio-de-cabelo/mosca e se posta diante a fixar só/fixa/mente: ela. Passados três dias era ainda a mosca. Porém, depois, três semanas após, esta­va grande como borboleta/flor/gafanhoto. Final do ter­ceiro ano, ele via mosca tão-maior—um tapir. "Conse­gui", pensou o homem, (sentiu-se) iniciado.

Saiu/seguiu-caminho e as pessoas lhe pareciam árvo­res, as capivaras colinas, as antas serras. Assim trei­nou/esmerou muitobem seu olho que podia centrar qualquer alvo. Mais: acertar/colocar uma segunda fle­cha no término da primeira, uma terceira na extremi­dade da segunda, e daí-afora, até que entre o alvo e o ar­co se formasse uma linha-compacta de flechas enfiadas umasnasoutras. Ponto àquele chegado, pens-consciente, duvida... Para vir-a-ser o maior arqueiro, mestre-arqueiro-de-todos, deveria eliminar o próprio (seu) mestre/guia.

N'uma tarde, luz obliqua tange/tinge, estando pelo prado/periferia da aldeia, notou o antigo mestre vindo em-para-si. Rapidíssimo, desperta/arco/levanta e o to­mou na mira.

Percebendo (pré-sabendo) o movimento, por sua vez, o mestre empunha/embraça o arco para responder/re­vide.

Duelo-de-morte: a precisão do tiro é tal, de parte e ou­tra, que as duas flechas se encontram no-meio da trajetória. NO AR. E caíram (ambas) por terra. "Como?" Somos tantos os grandes arqueiros, neste mundo!, e o (já) então grande arqueiro virá-a-saber de um mestre ainda-melhor que o primeiro. Velho/índio-iluminado. Santo/sábio/supremo, era O-perfeito.

Encontrá-lo em seu hermo/solidão, alto de um monte, é tarefa-que-pede três anos, luas-contadas. Selva-rios-distância. Pacientespera. Sacrifício/vontade/certeza.

Se apresenta atirando n'uma revoada de pássaros es­pantados/espalhados que revoam, atravessa/matando sete deles, única flecha, um tiro apenas. Aos-pés dos dois. O velho contempla sorri. Generoso/generumano, compreende.

Voa/passa uma garçaltissima, o mestre põe uma fle­cha invisível n 'um arco também invisível/inexistente e a alcança/abate/derruba, inexorável chão. Espanto-de-clamar! Completa/comenta, língua de boca-que-nâo-fala/transmite: enquanto depender arco/flecha para atingir o alvo (e usar olho para VER, não será preciso, nunca será arqueiro, na verdade nem será.

Age em-neste-tanto; com o dito, feito/findo. Deciso — seguro — o velho mestre assume de força das mãos do recém-chegado, o arco (ora não-jamais necessário) e o rompe/destrói, mandando pedaços quase-brutal ao precipicio-não-vejo-fundo, lá, alma/âmago do mundo.

Indica mesmo gesto, completo O-sublime, lugar-único que ocupou/possuiu/serviu por tantas es­tações/gerações, quantas? E da vida se ausenta afastando-se/adentrando destinos misteriosos sagra­dos/segredos novos-novos da floresta. Natureza só com ele intima, na razão de abrir passagem afastar galhos, índio-velho, imperioso/intima/ensina real-posto onde estivera sempre, longe dos homens para melhor enten­der sua poucamente fraqueza-banal angústia, a medi­tar consolação (se há) nesta visão infinita de verde ver­de verde, águas grandes, gritos cantos urros, morte e vida. Putrefato nascimento: até o fim, até quando o pró­prio SOL, à espera dos-que-virão, um dia, quem sabe (e-lemesmo), não comece a se apagar/envelhecer.


Jirges Ristum é cineasta. Trabalhou 14 anos na Itália, com Rossellini. Antonioni, Bertolucci e Glauber Rocha. De volta ao Brasil, foi assistente de direção em "Rio Babilônia", de Neville de Almeida.



in FOLHETIM 11 de julho de 1982

SANTUÁRIO (em Cine/Contos)

SEQUÊNCIA 1—Partir hoje é-já incerto/obscuro amanhecer

SEQ. 2— Embora não fosse este o tipo de mensagem que Cláudia pudesse mandar, CLAUDIA (quase) não se espantou muito. Saber/admitia que, desde-uns-dias, alguma coisa estava acontecendo, fora-controle. Difícil detectar, ver/ouvir/tocar/cheirar, que se PERCEBE apenas: Inútil negar, também, o rondar latente do não-dito-mas-sabido: não demora tanto, a crise alcançaria seu mais agudo cume, o mais delicado e, quem sabe?, decisivo. E CLAUDIA que, todavia, chegara mesmo a confiar, se aborrece/entedia.

SEQ. 3 — Cláudia, afinal, apesar de recém-criança, tudo sabia da pequenez do mundo — a impureza do homem e a, dela, intocabilidade, mensal — e prova/profunda/pena ao interiorizar total impossibili­dade/e/ou incapacidade!) de o generumano HUMANIZAR-se, aumentar/crescer, sem­pre, tentativa/viver. Por que? Só viver lhe bastaria, querida Cláudia, um NÃO ao com­promisso, empenhos há-penas. E o fato de ser ela capaz de amar/assumir, sem-culpas, a simesma, lhe dava uma solidez que ne-nhum-nada poderia atacar/contrariar, tão-perdida na certeza do seu destino. Não (lhe) bastariam mais, agora, prazeres menores, os acertos e arranjos, falsidade-da-comodidade.

SEQ. 4 — CLAUDIA encontrou-se com Cláudia pela primeira vez n'um café e atração-contato/simples-imediato. In-quietante. Logo descobrem que não têm somente nome em comum. É visível, em-patia. Cláudia, dezesseis anos, jamais se questionará diante de sua diversidade. Era assim, toda-vida foi, pronto! Fácil explicar-se com alguém que realmente está com você.

SEQ. 5 — Talvez não haja muito tempo, eu-sou-MULHER, cansei-me de deplorar, de "desculpes-me", perdões. Sou velha para mimesma — soma/sobra de tudo o que fui e não — exijo respeito. Pelo amor, basta. Cláudia erra por si, se quiser. Eu vou tentar até que possa. Assim, CLAUDIA caminha pela sala semi-escura, mortiça na luz fu­gidia da tarde/desmaio, versos-de-adeus en­tre mãos pálidas.

SEQ. 6— CLAUDIA revê seu marido, ela fica com o menino, é claro. A discussão nem dura muito. Ele também, n'outras, não aparentava necessidade de reagir, alheia toda a vontade de justificar-se, repetir-se, aos-olhos-de-quem pouco tinha procurado, no fundo, entender. CLAUDIA sabia, calava-se. Ele, silêncio.

SEQ. 7 — Mudar/casa. Matrícula novescola. Bares. Achar novos amigos, velhos-de-problemas, arcaicos. Frio. Outra vida. Outra CLAUDIA. Amores? Apático esperar, (ancestral), não-interesse, até quando? Re/nascer des/agregar des/regrar — em­briaguez (filho) drogar-torpor/dissipar — dis/pensar. Longas noites: sonhos vãos.

SEQ. 8— Fatal!... Estamos aqui, assim, há seis meses — não conseguimos evitar o-que-vai pelos outros, todos. Eisaí: da mesma forma, como-sempre, mergulhadas no trivial/mediano. Já não estamos juntas, já não SOMOS não, nos transformamos — dois pólos, compreendemos? Opostos, distantes, discretamente repetitivos. Cláudia (porém) não condena aquele certo maternalismo da outra e deixava-se levar — ah, CLAUDIA! — por uma letargia/preguiça, sempre premiada. Tempos de desequilíbrio e de amor.

SEQ. 9— CLAUDIA está na cama ao lado de Cláudia, envolvida n'uma (quase) ra­diante segurança de ser feliz, sensação/re-descoberta-velhanova, depois do AMAR. Eram momentos doces, mornos. Fragmentos/fotogramas a-temporais em que Cláudia sempre repete sua natural-natureza e se procura/afirma, uma ânsia-juvenil, uma grandeza-madura de querer só-sentir os sentimentos tantoquanto perfeitos, daqueles que são pura-emoção e determinam, em causas, mudanças-radicais-na-vida-da-gen-te. Qualidade/intensidade maior. Encontro, O-real, tornado único. "Crescer libertar gozar". CLAUDIA sabia, calava-se. Can­tava Caetano. Cláudia assegurava ser cons/ciente de todo desejo projetado no seu in/cons/ciente. Isso é bom. No entanto, saber ANTES é quase-um-sofrer: às vezes chorava.

SEQ. 10 — Tudo acontecia neste espaço, intimidade/refúgio. Sacrário, signo/sinal. No início era nossa Depois, uma tarde — es­tava próximo o crepúsculo — ausente qual­quer indicação anterior que avisasse, uma sombra uma dúvida, algo se rompia sem visível e clara/lógica explicação. Um raio fugaz, rápido fulmíneo, que deixa atrás de si assustadora incorruptível verdade — daliendiante, nunca-mais a mesma coisa. Troca de olhar-que-se entende, ninguém precisa falar.

SEQ. 11 — CLAUDIA e Cláudia gos­tariam, sinceramente, que o caminho fosse UM diferente. Até lutaram para desviar o inexorável destino dele-e-delas, (nem-que-se para retardar de um segundo), mesmo con/sabendo o inevitável. E se apartam tris­tes. Sequer buscam esconder o que sobre­vive de eterno no sentimento-que-não-muda. Contentes com ele, parece. De­soladas por não realizá-lo.

SEQ. 12 — E se apartam, profundo abraço. Cláudia vai sozinha pela rua/névoa/náusea, memória, amargo sabor das coisas deixadas: mesmassim, indagação silenciosa se abriga, n'um-repente, dentro dos olhos grandes — ela SABE que é se­paração. S'irriquieta. Caminha. CLAUDIA dá passos em sentido contrário, sim, não se odeiam. (Um-acabar-que-nâo-termina). Pára/anda/pára. Vira/olha/vê: Cláudia es­tá voltada para ela, assistiu a indecisão, sorri. Tornam-se as duas, retomam cal­mamente sua resolução. E seguem. CLAUDIA também está sorrindo...

FADE (and) OUT

Jirges Ristum é cineasta. Trabalhou 14 anos na Itália com Rosselini, Antonioni, Bertolucci e Glauber Rocha. De volta ao Brasil, foi assistente de direção em "Rio Ba­bilônia", de Neville de Almeida. Está lançando um livro de poesias, "Guardanapos Escolhidos".


in FOLHETIM, 28 de novembro de 1982


Non Ti Amo Come se Fossi Rosa di Sale, Topazio

Non ti amo come se fossi rosa di sale, topazio
o freccia di garofani che propagano il fuoco:
ti amo come si amano certte cose oscure,
segretamente, tra l'ombra e l'anima.

Ti amo come la pianta che non fiorisce e porta
dentro di sé, nascosta, la luce di quei fiori,
e grazie al tuo amore vive oscuro nel mio corpo
lo stretto aroma che è salito dalla terra.

Ti amo senza saper come, né quando, né da dove,
ti amo direttamente senza problemi né orgoglio:
cosi ti amo perchè non so amare in un'altra maniera,

se non cosi, in questo modo in cui io non sono né tu sei stata,
tanto vicino che la tua mano sopra il mio petto è mia,
tanto vicino che si chiudono i tuoi occhi col mio sogno.


28/11/74 - Giovedi – Ore 01,15, notte, in memorian
Buon Natale!!!

Nosso encontro

Nosso encontro

està marcado noutro relogio

no relogio de outro tempo

se hà tempo

e se hà alma

porque foram nossas almas

e não os nossos olhos

o que pusemos

nos olhares que trocamos


Um Doce Quente Vento de Verão

Um doce, quente vento de verão
no adeus a uma terra e outra terra,
a cada boca e a cada tristeza,
à lua insolente, às semanas
que enrolaram os dias e desapareceram,
adeus a esta e àquela voz pintada
de azul, e adeus
à cama e ao prado costumeiro,
ao lugar vesperal dos adeuses,
à serra casada com o mesmo crepusculo,
ao caminho que fizeram os meus pés.
Um doce, quente vento de verão:
eu me difundi, nâo tem duvida,
mudei minhas existencias,
mudei de pele, de modos, de odios,
tive de fazer assim
nâo por lei nem capricho,
mas por uma corrente
que me acorrentou a cada novo caminho,
e eu tomei gosto pela terra, por toda a terra.
Um doce, quente vento de verâo
e eu logo disse adeus, recém-chegado,
com a ternura ainda recém-partida
como se o pâo se abrisse e de repente
todo o mundo pudesse comer.
Assim, eu fui de todos os idiomas,
repeti os adeuses como uma velha porta,
mudei de cinema, de razão, de tumulo,
fui de todas as partes a uma outra parte,
continuei sendo e prosseguindo
meio desmantelado na alegria,
nupcial na tristeza,
sem saber nunca como nem quando
pronto para voltar, mas nâo se volta.

Sabe-se que o que volta nâo se foi,
e assim a vida andando e desandando
mudando-me de traje e de planeta,
acostumando-me à companhia,
à grande amargura do desterro,
à grande solidão dos campanarios,
à desesperada saudade deste doce,
quente vento de verâo.



Rom, estate,74

Na Rue de la Glacière queimamos as imagens sagradas

Na Rue de la Glacière queimamos as imagens sagradas
e os ornamentos e as flores quase na esquina, enquanto
o quarto se abria para a espiral do elevador com um
impulso suave, e atrás da janela o tempo nos olhava,
o leito era branco nós dois subimos rindo porque eles
tinham dito "elle n'est pas là", você tinha medo, e as
flores eram gotas limpidas de chuva naquele agosto
lento como voce, lenta, tirando seu vestido e nós
fechamos toem as cortinas Na Rue de la Glacière
onde queimamos as imagens e todos os ornamentos,
um pequeno fogão, as lagrimas dos amantes felizes
na Avenue des Gobelins quando nos beijamos

Lon, 23.8.72

Carta a Glauber Rocha

glauberocha:

li teu Riverao & maravilhado encabulado chocado perdido espantado emocionado exaltado enlouquecido petrificado excitado contente desbundado consciente tragico cinematografado escolhido melhorado sexuado santificado feliz mineirobaiado conjugado unido bem-tratado barroco engajado perene afiliado apocaliptico aflito patriota livre drogado esperançado informado saudoso dedicado modoificado brasilesteticado arrepiado abecedado antropofagado estarrecido assumido completado perplexo enternecido amado dramatico amarrado lindo participado satisfeito oculto veredado confirmado verdadeiro genial edificado agradecido revolucionado

gritei na janela desta casa de monteverdevecchioroma vivendo com gringamericana ainda sem entender sacaçao porque continuo a berrar olha o poeta olha o profeta olha olha - Tu és EL-Unico mon ami
mandei abraço grande saudade jusussucitado abril 1979


23/Apr/79 "Tudo Bem teu J."



As Vidas Cortadas - Cláudio Abramo

Só se percebe que se vive em alguns momentos da vida. Entre esses está o momento em que um amigo, mais jovem, morre, mesmo que sua morte fosse temida ou pressentida. Nestes quatro anos que passei entre estrangeiros, e estrangeiros europeus, personagens irrisórios e cínicos de uma tragédia universal, perdi, no Brasil, e aqui, vários amigos, antigos ou recentes, na maioria mais jovens do que eu: viver além daquilo que se pensava ser possível, viver quando se tinha 25 anos, ou 35, ou 40 anos é sempre pesado.

Nesses quatro anos morreu Luisinho Travassos, que para mim era quase um filho: jovem líder estudantil em 68, apareceu um dia em minha casa, com aquele seu ar perplexo e sofrido, magro, pálido.

Ele era caçado como inimigo público, embora não houvesse prisão preventiva decretada (depois fizeram até isso). A estupidez de nossos sucessivos ministros da Educação os transformou em alvo da fúria policial. Naquela época ainda não se torturava com choque elétrico, ou se torturava e depois se suspendeu isso, por interferência do general Geisel, me dizem, mas não sei bem. Luisinho Travassos era, às vésperas do Congresso da UNE, um jovem perseguido. Preso, em Ibiúna, mantido preso, trocado pelo embaixador Elbrick, viveu a juventude no exílio. Voltou para o Brasil para morrer numa quarta-feira de cinzas, num desastre de automóvel no Rio, um desastre irrisório, sabendo que estava morrendo. Não consegui escrever uma linha, então, apesar dá insistência de amigos e familiares que sabiam quanto eu o estimava.

Morreram vários outros, entre Luisinho Travassos e Teotônio Villela, que não era propriamente meu amigo, mas por quem eu tinha um grande respeito e uma forte admiração. Morreu Manuel Scorza, estupidamente, num desastre de aviação em Madri, morreu tanta gente. E agora, esta madrugada, minha filha me telefona para me anunciar morte de Jirges Ristum, um dos moços mais inteligentes de sua geração, que tinha dentro de si a percepção do que é política e do que é a realidade. Eu o conheci na redação desta Folha, há muitos anos, quando o jornal não tinha tantas estrelas, como tem hoje, pois não havia como pagar tantas estrelas então, mas tinha alguns excelentes profissionais que conheciam seu trabalho. Jirges me foi assinalado por dois amigos, A.M. Pimenta Neves, hoje correspondente do "Estado" (dirigiu "Visão", que transformou numa revista importante, embora outros levem a fama, trabalhou comigo neste jornal, dirigiu a "Folha da Tarde" durante um brevíssimo mas brilhante período, teve um alto cargo na Abril, foi correspondente desta Folha e depois da "Gazeta Mercantil" nos EUA), e Roberto Muller (várias vezes na Folha, depois diretor da "Expansão", que não sei se existe ainda, e há anos na direção da "Gazeta Mercantil"), assinalado portanto, por dois amigos, cujo julgamento levo em conta. Depressa Jirges começou a fazer matérias políticas, o que não era fácil no período de quase-negro total que começa a obscurecer todo o Brasil, como um manto soturno e sombrio. Casou, um belo dia, com uma moça de Bauru, ou Araçatuba, ou Ribeirão Preto, não me lembro, e casou na minha casa. Partiram depois para a Polônia, mas ficou pouco tempo, foi para a Itália, onde começou a escrever uma tese sobre Antônio Gramsci. Era um jovem então, e brilhante. Na Itália não sei o que aconteceu. Recebia dele recados, mensagens, sinais de vida. Mas cada vez mais raros. A sua vida foi se misturando ao "fog" europeu, como um telefonema interurbano conseguido com uma pilha de baixa voltagem.

Com a anistia voltou para o Brasil: quase não o reconhecemos, Radhá e eu, mas ele já estava doente. Voltou para a Itália, após uma breve passagem entre o sol ilusório, a grande cidade habitada por bilionários e miseráveis e voltou para tentar retomar a vida que tentara, de cineasta, assistente de Antonioni. Guardou o carinho com os amigos, conservou o gesto terno e compassivo com os filhos e filhas dos amigos antigos, de antes: do exílio não desejado. Depois só soube dele por terceiras pessoas, recados de minhas filhas, fiapos de informações. Sabia que estava agora em Nova York, pois recebera recado de Roberto Muller, que tratara de tudo. Ruth Escobar me disse que lhe arranjara um emprego, quando ele já estava gravemente doente.
São vidas cortadas. Cortadas pelas opções existenciais, pela escolha pela doença, mas cortadas também por essa ditadura que nos impuseram, e que pretende prolongar-se, patrocinando a entrega do País a um colégio eleito sem que o povo soubesse que o elegia, e ao qual se entrega a responsabilidade, que não pode ter, de decidir por todos. Uma responsabilidade que não lhe demos, e que lhe deve ser retirada.

in Ilustrada - Folha de S. Paulo - Sexta-feira, 20 de janeiro de 1984

Morre em N. York o Cineasta Jirges Ristum - MIGUEL DE ALMEIDA

— Rapaz, você não acredita: caiu o bigode. Tô ridículo.
Era Jirges Ristum, o bom "Turco", dias antes do Natal, com seu inabalável humor. Em Nova York, onde estava há mais de três meses, para tratamento de leucemia, recebia os telefonemas dos amigos (e muitos amigos) e a tudo rebatia com impecável classe e ironia. De todos, era o mais confiante e a todo instante avisava que chegaria em breve. Chega, mas não como queríamos: na madrugada de quarta-feira, aos 41 anos o cineasta e poeta Jirges Ristum morreu, após um derrame cerebral.
A história humana, e aqui entra a social e cultural, deve ser escrita com nomes que por razões várias são atropelados pela morte antes de erguer algo capaz de torná-los definitivos. Não se tratam de meteoros, mas de estrelas belas que não tiveram de tempo de fixar para as massas seu brilho indiscutível. Assim era Jirges Ristum, autor de um livro de poemas, "Guardanapos" e assistente de direção de Antonioni ("Mistério de Oberwald"), Bertolucci ("La Luna"), Rosselini ("Ano Hum"), Glauber Rocha ("Claro") e Neville de Almeida ("Rio Babilônia"). Preparava-se para seu primeiro longa-metragem, mas foi tolhido com o diagnóstico da doença e por quase nove meses tentou resistir, deixando uma última esperança em Nova York.
Ok, tudo parece apenas elogio simples, de amigo para amigo, mas em matéria anterior, registrava frase de Glauber Rocha: "Jirges Ristum é o maior cineasta brasileiro não revelado". E, hoje, do outro lado do Atlântico, em algum apartamento de Roma, também certamente acabrunhado, Bernado Bertolucci diria algo semelhante de seu assistente de direção, um sujeito que segurou a barra difícil das filmagens de "La Luna". Ou mesmo Michelângelo Antonioni, diria da parceria em "Mistério de Oberwald", quando tudo inicialmente fora filmado em vídeo — numa ousada proposta de Ristum.


Trabalho competente

Obstinado aventureiro, Jirges Ristum, nascido em Ribeirão Preto, teve rápida passagem pelo jornalismo (trabalhou inclusive na Folha), e desembarcou em Roma, no final de 68, atrás de uma tese sobre Antonio Gramsci. Logo fixou seu amor pelo cinema e, na RAI, fez seu primeiro documentário, "Passaporte Diplomático" — responsável por sua estada européia quase perto de onze anos: Ristum registrou a chegada de exilados brasileiros a Argel, a turma que sequestrara o embaixador alemão. Foi muito competente no trabalho e a enorme repercussão do documentário na televisão, criou atritos com as autoridades brasileiras. Teve de permanecer vários anos sem passaporte. Nem por isso se angustiou à semelhança de outros exilados: ali, em Roma ou Londres, onde trabalhou na BBC como redator, na impossibilidade de realizar todos os seus projetos, optou por ser personagem — desses capazes de alimentar vários livros com suas histórias e pela sua simples presença.

— Como sou pós-freudiano e pós-marxista e antiplatônico e antiaristotélico, procuro imaginar as histórias sem censura — dizia Jirges Ristum, em julho de 82, recém-chegado de Roma. E, por certo, sem censura, também vivia as suas histórias, criando bela biografia. De amigo.

Voltou ao Brasil, no início de 82, trazido pelas mãos de Neville de Almeida, para as filmagens de "Rio Babilônia . Tantos anos longe daqui, ficou alucinado com os fragmentos urbanos que ia recolhendo durante a realização da fita. Até se sentia assustado de presenciar cortes rápidos, e doídos, como a ida a um morro carioca e depois entrar numa boate de muito dinheiro. Sabemos, e ele viveu isso na carne, o golpe militar só fez realçar as diferenças sociais no Brasil.

Poeta, seu único livro de poemas nasceu do limite. Do limite amoroso. Ingrata musa deixava-o horas aguardando-a em mesas de bar. Na dureza da espera, escrevia poemas de amor nos guardanapos. Nada mais síntese de sua personalidade: o registro do fragmento, que agora poderia ser doloroso e, no momento seguinte, eterno êxtase.

Por tudo, um beijo.


in Ilustrada - Folha de S. Paulo - Sexta-feira, 20 de janeiro de 1984

Cinema Brasileiro Tem Jirges Ristum de Volta - Miguel de Almeida

Jirges Ristum é um bom contador de histórias. E também um emérito ficcio-nista. Dificilmente não fantasia os fatos, alguns acontecimentos, inventando personagens. A explicação, se é que se explica a imaginação, é uma só: a fuga do real. É quando ele não consegue abandonar o seu lado de cineasta, de assistente de direção de Rosselini, Antonioni, Bertolucci, Glauber Rocha.

"Ao lado do teatro, e da literatura, o maior inimigo do cinema é o real, o realismo" — diz Jirges.

E como todo contador de histórias, que também possui seu lado de aventureiro, Jirges Ristum tem as suas epopéias. Ao sair do Brasil, há quase quatorze anos, largando a profissão de jornalista para elaborar uma tese sobre Antonio Gramsci, em direção a Roma, ele jamais imaginara que sua vida estivesse tomando rumos tão diferentes. E agora, depois de retornar pelas mãos de Neville d' Almeida, de quem foi assistente de direção em "Rio Babilônia", os planos vão se alterando com as horas. Se prepara para iniciar as filmagens de um curta-metragem tendo como estrela Norma Bengell, que leva um simples nome: "Ela". Aguarda, também, a publicação de um livro de poesias bastante inusitado: "Guardanapos Escolhidos". São poesias escritas em guardanapos de bares enquanto o incauto romântico — no caso, Jirges — aguardava, por horas, a sua musa.

A literatura e o cinema sempre estiveram mais ou menos enroscados nas mãos de Ristum. Como ele mesmo confessa, possui certas veleidades literárias. E não há muito tempo, escrevendo roteiros ou argumentos para cinema, cunhou a expressão "cine-conto". Que também é um estilo de narrativa. Pegando do cinema a agilidade da descrição, os cortes bruscos, até a simultaneidade, Jirges jamais cria um argumento para um filme sem acrescentar os elementos poéticos, literários. O "Folhetim" do próximo domingo publicará "Acerta-a-Mosca", um texto que é também um argumento para cinema.

"Meus argumentos, na maioria das vezes, são feitos sem diálogos" — diz Jirges. "Em "Ela", por exemplo, que vou fazer com Norma Bengell, criei uma situação emblemática sobre um tema que gosto: a mulher. Porque tenho um interesse acentuado pela problemática da mulher em geral e em particular, também "

Os cine-contos criados por Jirges obedecem uma composição, não só técnica como estilística. Ele busca na linguagem uma forma de visualizar, pelas palavras, as cenas que serão captadas mais tarde pelas câmeras. E, ao descrever os movimentos dos personagens, ao puxar os olhos do leitor, planifica a ação baseado na técnica cinematográfica. Assim, quando a atenção deve estar somente sobre certa parte do corpo, por exemplo, trata de colocar no texto recursos narrativos que não mostrem nenhum outro detalhe.

"Os textos têm cortes, possuem mudanças rápidas na ação — vai contando Jirges. Existe também uma certa respiração, as pausas, as rupturas. Porque eu quero que o texto também sobreviva como obra literária, e não apenas como argumento para um filme. A fita existe apenas na minha cabeça. Mas pode existir como texto de criação."

Ao escrever um cine-conto, ou ao pensar num argumento para cinema, Jirges Ristum jamais abandona uma mania. Ele é incapaz de criar uma história na qual a mulher não surja como catalizadora da cena dramática. Seus textos, suas idéias, sempre trazem a presença feminina desestruturando a narrativa, provocando modificações, enfim, polarizando a ação da narrativa.

"Como sou pós-freudiano e pós-marxista e antiplatônico e anti-aristotélico — conta Jirges — procuro imaginar as histórias sem censura. A mulher é muito forte no meu trabalho; não consigo criar qualquer história em que ela não tenha um papel fundamental, decisivo. Procuro enxergar o mundo pela ótica feminina. Por quê? Ela possui uma maneira de exprimir o mundo que o homem não consegue expressar — isso em toda a humanidade." E foi a presença feminina que novamente provocou os guardanapos poéticos. Segundo Jirges, eles nasceram da espera. De esperar a mulher amada. Enquanto ela não vinha, mergulhado em variados humores, ele escrevia poemas, pensamentos, pequenos hai-kais, revelações que surgiam na mesa do bar. Jamais pensou em publicá-los até que os amigos insistiram na qualidade do material. Nasceu assim os "Guardanapos Escolhidos".

"O livro deve sair em breve — conta Jirges. Serão quase 130 hai-kais, poemetos. É uma coletânea com os temas falando de amor, alegria, muito tédio, sempre uma situação específica da minha vida. Como são saques de momento, são reflexões, trazem uma avaliação da realidade.

Com Antonioni, muitos projetos

A experiência no cinema italiano foi bastante rica. Começou quase sem querer: Jirges trabalhava na RAI e foi cobrir a chegada dos quarenta brasileiros permutados com o embaixador alemão. Não se limitou em escrever o texto, mas quis filmar as cenas, mostrando a situação dos exilados. Pronto o material, batizado de "Passaporte Diplomático", sua exibição provocou uma retaliação por parte do governo brasileiro.

"Como eu filmei uma menina baleada na perna — conta Jirges — houve repercussão da matéria. O resultado foi que fiquei sem passaporte para voltar. Tive de ir-me virando pela Europa."

E se virou bem, o rapaz. Tratou de abandonar o jornalismo, cair no cinema. Pensou que seria documentarista, especialmente depois de assistir ao trabalho de Antonioni sobre a China. Mas teve um problema, de cara:

"Eu não podia ser documentarista, pois era ficcionista em todas as situações. Qualquer coisa que criasse saía ficcional."

Em pouco tempo começou sua carreira como assistente de direção ao lado de Antonioni ("Mistério de Oberwald"), Bertolucci ("La Luna"), Glauber Rocha '( "Claro"), Rosselini ("Ano Hum"), além de muitos projetos ao lado de Antonioni, que, por vários motivos, não deram certo.

"Com Antonioni fiz muitos projetos, viajamos muito, numa convivência diária por vários anos. Se os filmes não saíram, nem importa. Seria uma excrescência."

Mas foi ao lado de Glauber Rocha, que o chamava de "o maior cineasta não revelado", que Jirges passou os melhores bocados: "Claro", produção de 75, ainda inédita no Brasil, foi feita em doze dias.

"E não fui só assistente de direção, mas ator também. "Claro", na verdade, é o pai de "Idade na Terra". Glauber continua com aquela sua oralidade de António Conselheiro, é algo muito bonito."

De volta ao Brasil pelas mãos de Neville de Almeida, Jirges terminou há pouco as filmagens de "Rio Babilônia":

"Pra mim foi um choque o filme. Estava fora do Brasil há quatorze anos. E íamos a muitos lugares diariamente, de uma boate da Zona Sul ao morro, da Zona Norte a uma cobertura na Lagoa. E filmar com Neville foi ótimo. Ele era o diretor que Glauber mais respeitava na nova geração. É um filho viril do Cinema Novo."

in Folha de São Paulo

Prefácio de Guardanapos Escolhidos -Tatiana Belinky

Quando meu jovem amigo Jirges — jovem, porque da geração dos meus filhos, a generosa e sofrida geração-dos-anos-sessenta — me pediu um prefácio para os seus Guardanapos, fiquei comovida. Comovida e perplexa: o que dizer sobre um livro que, com licença de Maiacovsky, é todo-coração? (Bem, quase todo. Porque ele é também muito reflexão). Pois não se trata de um livro pensado e elaborado diante de uma escrivaninha, ele não é uma obra literária formal, nem mesmo intencional. É coisa bem diferente, algo que não foi programado, mas que aconteceu meio ao acaso, brotou da cabeça e da caneta deste cineasta (mas poeta, poeta) Jirges, brasileiro tantos anos exilado; tantos anos nômade, se badalando pelo mundo, morando ou passando, assistindo ou participando, vivendo e aprendendo e batalhando a vida — e esperando. Esperando pelos acontecimentos, pelas oportunidades, pelas cartas, esperando pelo retorno e last but not least (para ser um pouco poliglota como ele mesmo) — esperando pela amada, em longas horas de solidão — (as amadas são muitas vezes retardatárias, "a/mais terrível/presença tua:/tua ausência") — em tantas mesinhas de tantos botecos de tantas cidades, Roma, Veneza, Paris, São Paulo, New York...
O que se passa, o que passa pela cabeça de um alguém, lúcido, sensível, temperamental (e apaixonado), que espera solitário diante de uma (e mais uma e outra) caneca de cerveja, de uma cachacinha, um copo de vinho ou mesmo um refrigerante? O que acontece quando esse fluir do pensamento — sóbrio, ébrio, nítido, difuso — escorre da caneta para o guardanapo de papel que se oferece, folha em branco, fala amigo?
Pingam sobre o guardanapo-confidente rabiscos e garatujas do fluxo do inconsciente, signos e símbolos, sensações e sentimentos em forma de graffitti, gritos e sussurros disfarçados em hai-kais, plaisir d'amour e chagrin d'amour em gestos gráficos, reflexões filosóficas em poemetos (poe-meus, diria o Millôr), agri-doces, irônicos, ansiosos, raivosos, entediados, e também tranquilos, risonhos, bem-humorados. Toda aquela gama, a escala cromática de emoções que — velhas-conhecidas, mas sempre novas na hora em que (nos) acontecem — pousam em expressões espontâneas sobre o disponível guardanapo e lá ficam, registro informal e distraído de um estado de espírito, memória vagabunda de um momento fugaz, uma impressão, uma sensação, uma percepção.
Foi bom que o Jirges, andarilho e poeta, guard(anap) ou os seus peregrinos insights e se deixou convencer a publicar esta breve seleção dentre as centenas daqueles reveladores quadradinhos de papel. Ainda que à custa de se expor — ele discreto-encabulado — e de se fazer vulnerável, ele sensível-reservado. Porque, mesmo se "todas as cartas de amor" (as dos outros) "são ridículas", o sorriso com que o leitor porventura acolherá esses pequenos poemas que ora alçam vôo, ora pousam no chão, será o sorriso da identificação e da cumplicidade.

Tatiana Belinky